Jorge Castelo Branco: Texto Introdutório a “O Áspero Tempo das Marionetas”, Joaquim Murale

Jorge Castelo Branco: Texto Introdutório a “O Áspero Tempo das Marionetas”, Joaquim Murale

     
 Este “O áspero tempo das marionetas” celebra 45 anos de actividade literária de Joaquim Murale. Reclamo, orgulhosamente, 12 anos deste pedaço de tempo, 10 como editor (Exausto Exílio, 2012). Permitam-me, nestas curtas palavras, começar por evocar a amizade que entre nós se foi sedimentando e a profunda admiração pessoal e literária que por ele nutro. Confesso aqui quanto o Joaquim Murale me tem influenciado, moldado e aquietado com a razão da palavra e a coerência do pensamento. Devo-lhe esse agradecimento.
Na auto-comprometida obra literária de Joaquim Murale desde há 45 anos (Do Fogo e da Água, 1977), dispersa pela palavra poética, a ficção narrativa e a dramaturgia (desde 1980 e reunida num volume, Teatro Completo, 2012), perene o desejo essencial: mudar o mundo pela palavra!
Tal desiderato, tarefa reservada a uma prole de semideuses, é semente lançada à terra desde há 45 anos, seara pujante cuja safra não foi ainda feita, mas que, creio profundamente, a breve tempo gerará o pão que alimentará muita boca e muita fome.
Da ruptura pela palavra às obras em seara
Joaquim Murale sabe-o bem: vivemos tempos de uma falsa e equívoca liberdade; o poder – político, social e financeiro – engajado com os media, são a âncora no pé de todos os que querem uma sociedade capaz de fundar novos valores e criar o novo homem e o novo mundo. Murale sabe, também, que qualquer exercício de uma nova reflexão sobre a sociedade, crítica, profunda e denunciadora, será sempre cerceada pela raiz por força dos interesses instalados.
A razão, ou melhor, a reflexão pela razão como força de ruptura, é profundamente inconveniente: o status quo apenas pretende pessoas negadas a si mesmas, pessoas quais gatos no meio da estrada, imóveis perante a “luminosa” força contrária.
A real dimensão e força da palavra e o preço a pagar pelo poeta
A obra de Joaquim Murale está inequivocamente comprometida com valores de justiça social e empenhada na edificação de valores de ruptura. Está comprometida, igualmente, com princípios essenciais de coerência, é uníssona, sólida e perturbante. Exige do leitor um comprometimento para o qual boa parte de nós não estaremos preparados, disponíveis e motivados. A poesia libertadora e disposta a mudar o mundo, exige ao leitor não só a compreensão do poema mas, sobretudo, a sociedade fora dele; e é, sob este ponto de vista, indecifrável, isto senão buscarmos emoções e visões do mundo numa força humanizadora. Aliás, o poder da literatura pode ser exponencialmente transformador e inquietante. Llosa refere-se a esse traslado – a capacidade de sairmos de nós próprios para um novo eu para o qual o autor nos transporta – como metamorfose: “o reduto asfixiante que é a nossa vida real abre-se e saímos para ser outros, para viver vicariamente experiências que a ficção transforma como nossas” (Mário Vargas Llosa, A Verdade das Mentiras). 
Se isto será válido para uma melhor compreensão da obra de ficção e dramaturgia de Murale, no caso concreto desta obra poética – dura, concisa, real, concreta e tangível, pisa terrenos nos antípodas da ficção – exige do leitor toda a sua humanizada e humanizante condição para melhor colher a palavra-semente de liberdade que permitirá, a nós leitores, melhor compreender uma visão alternativa a uma sociedade que nos subjuga e corrompe.
Fica claro que Murale usa a palavra poética como uma arma, perdoem o cliché; não pretende a indiferença, a palavra fere, rasga, não vem ornamentada; sustenta(-se em) conteúdo, denuncia, acusa, expõe. Por vezes, sacrifica-se a estética, a lírica: a mensagem é o centro da composição.
A falsa democracia
Murale não faz navegação à costa: a luz anuncia-se a estibordo, talvez longínqua, mas ao alcance da palavra, uma luz-palavra, necessidade universal que inspire a humanidade. A caricatura da democracia, ou como disse Saramago “sequestrada, condicionada, amputada, (…) podemos decidir qual o governo que elegemos, mas as grandes decisões são tomadas numa outra esfera, e todos bem sabemos qual é…” é o esteio que sustenta grande parte deste “O áspero tempo das marionetas”. Essa falsa democracia (Murale grafa democracia em itálico ao longo deste livro) é, segundo o autor, opressora e distópica, e denuncia-a à exaustão. Não, o homem não é livre, o homem é uma marioneta, eles (também grafado em itálico, algo que nos sugere a red right hand de Milton), quais titereiros, articulam-nos, manietam-nos, prostram-nos, erguem-nos, fazem-nos dançar; despudoradamente… acanalham-nos.
Este livro – toda a obra de Joaquim Murale no seu conjunto – é um alerta mas também uma mensagem de esperança: poderemos mudar o mundo. Isto não é um exagero retórico. Podemos mesmo!, e é urgente!, para todos – retiro da dedicatória –, que não se rendem, que não se humilham, nem aceitam as muitas formas de estar morto.
Gumiei, Viseu, Junho de 2022
 
 
 

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