José Barreto, o taxista poeta.

José Barreto, o taxista poeta.

 

28 de Abril, sexta-feira, 21 horas

Salão Nobre da Junta de Freguesia do Bonfim
Campo 24 de Agosto 294, Porto
 
Lançamento de “POESIA SOBRE A BUSCA INCESSANTE DO AMOR”
  
 

Está quase a fazer um ano que olhaste pela última vez para nós.

Chegamos perto de ti, sem reconhecer as tuas feições, efeitos do atropelamento que te pôs num estado horrendo. Tinhas os olhos inchados, pareciam beringelas. Não conseguias abri-los. Todavia, com muito esforço, abriste o olho direito e pediste para nos baixarmos para que pudesses olhar para nós. “Que filhas belas”, disseste.
Radiante com a visita das tuas queridas filhas, quiseste estar “a altura”: murmuraste algumas palavras em inglês, francês e português. Disse-te que parecias a avó a falar. Respondeste com um gracejo: “Quem sai aos seus, não é de Genebra”.
Tinhas os pulsos presos. Pediste com toda a tua força: “Solta-me!”. Depois, disseste: “Deem-me um beijo em simultâneo». E assim o fizemos.
Está quase a fazer um ano que olhaste pela última vez para nós. Poucos dias após o teu esforço para avistar-nos, fechaste os olhos para nunca mais os abrir.

 Está quase a fazer um ano que recebi a chamada mais sombria da minha vida. O médico disse-me numa voz sóbria: “Chegamos a conclusão que o estado do seu pai é irreversível. Já não há nada que possamos fazer. O seu pai irá falecer ainda hoje, será uma questão de minutos ou horas”. Eram, nesse momento, 16h30, hora Suíça, do dia 30 de Dezembro. Estava com a minha filha e a sua amiga num parque infantil. Caminhamos para casa como se nada fosse. Aguardei a chamada definitiva. Senti-me como se tivesse clicado stop numa cassete VHS. Num estado nada comparável à correria dos dias de hoje em que nada se aguarda, em que reclames são dispensados e ultrapassados e tudo se transforma. Senti-me péssima por ansiar a chamada. Que coisa mais perversa! Após semanas a aguardar, diariamente, notícias do hospital, tínhamos noção do provável desfecho. Mas nada me tinha preparado para ficar à espera da morte do meu pai! Aguardei todos os segundos pela chamada do hospital. Trilhaste os prognósticos. Sobreviveste ao dia 30 de Dezembro. Depois de uma noite angustiante, pelas 14 h do dia 31 de Dezembro decidi ir tomar banho para refrescar a cabeça que tanto pesava. Enquanto a água escaldante me corria pelas costas, a minha consciência gritou-me: “O MEU PAI ESTÁ À MINHA ESPERA!». Saí do banho e afirmei, decidida, ao meu marido que ia imediatamente para Portugal. “Enquanto eu não for, ele não partirá”, acrescentei. Enquanto me vestia, ele comprou a viagem. Em modo expresso peguei no mais necessário, despedi-me e fui a correr fazer o teste Covid. Com o teste negativo de Covid na mão e pé pesado no acelerador, liguei para o hospital a informar que estava a caminho e que dentro de 3 a 4 h lá estaria. O médico acentuou que seria uma questão de minutos e que provavelmente não iria a chegar a tempo, mas eu não recuei na minha decisão.

O voo estava atrasado – caramba! Quando o avião começou a mover-se na pista desliguei o telemóvel, como usual. Foi aí que não contive as lágrimas sussurrando a aflição que sentia, pois provavelmente iria perder a chamada que aguardava e temia. Quanto mais tentava conter-me mais alto gemia. Um tripulante, Sydney, ofereceu-se para mudar-me da fila 5 para uma fila que estava completamente vazia, a fila 10. Como não me acalmei ele pediu permissão para se sentar ao meu lado e consolou-me com histórias da sua vida, relatos pungentes sobre a morte da sua avó e do seu irmão mais novo. Sydney, ficarei eternamente grata pelo teu gesto tão humano. Fiquei ainda a saber que o voo que tinha tomado era suposto ter sido cancelado. Mal o avião pousou a pista do aeroporto Francisco Sá Carneiro, liguei o telemóvel e confirmei, satisfeita, não ter perdido qualquer chamada. Ergui-me da cadeira e acelerei passo até a primeira fila do avião enquanto o veículo ainda estava em movimento. Recebi um aviso da tripulação, mas eu, como ex tripulante de bordo – algo que sempre orgulhou o meu pai –, sabia dos procedimentos e ignorei. Queria estar à frente e não podia perder segundo algum. Mal a porta do avião foi aberta corri como se estivesse a correr pela vida. Pelo contrário, ironicamente, estava a correr pela morte. Queria chegar perto do meu pai antes de ela chegar.
Precisava de, rapidamente, apanhar um táxi. Nunca necessitei de apanhar um táxi na Invicta. O meu pai sempre me deu as boas-vindas com uma rosa branca numa mão, uma garrafa de água na outra e um abraço apertado, por vezes até desconfortável. Desta vez seria diferente. De hoje em diante seria tudo bem diferente… Pois bem, à saída do hall das chegadas, dei comigo incrédula. Não havia qualquer táxi! Era noite de passagem de ano, noite de festa para muitos, noite de miséria para outros, e não havia táxis disponíveis. Comecei, novamente, a chorar baba e ranho. Isto não podia estar a acontecer! Comecei a correr de carro em carro, de condutor em condutor a implorar para que me levassem ao Hospital de S. João. Foi-me negado infinitas vezes. Reparei que uma senhora olhava pra mim com olhar de quem quer acudir mas sem ter como. Até que, ironicamente, uns imigrantes na Suíça – a esposa teria chegado com o mesmo avião e o marido esperava-a – cederam ao meu pedido. Levaram-me ao Hospital de S. João. Quando pararam o carro, recusaram a minha oferta de dinheiro, e logo desatei a correr. “Estou a chegar, pai, espera por mim”, dizia para comigo.

Está quase a fazer um ano quando te disse: “Cheguei pai!” Imediatamente deste três profundos respiros. Conclui nesse instante que seria o estado em que te encontravas desde a cirurgia prolongada que te levava a respirar assim. Fui com a ideia que iríamos saudar o novo ano de 2022 juntos, lado a lado. Posicionei-me do teu lado esquerdo. Peguei na tua mão e pousei a minha mão esquerda em cima do teu coração. Dei os beijinhos de quem me tinha pedido: da tia, da mana, dos teus netos, e da mãe, tua ex-mulher.  Olhei para a máquina, tinha as pulsações a 92. Reparei que começavam a baixar. Quando o enfermeiro chegou, partilhei a minha observação. Ele respondeu, frio: “Que quer que lhe diga?”
Pedi-lhe um banco para me sentar. Estava fraca, não tinha comido nem tampouco dormido desde o dia anterior. As pulsações foram descendo, lentamente mas com firmeza. De 92 para 89, 86, depois para 70 e tal. Disse-te, com voz tremida: “Estás a partir, não estás, pai? Vai, pai, eu estou aqui ao teu lado. Podes ir, pai. Vai em paz.” Lembrei-te de alguns bons momentos que passamos juntos, momentos que para sempre guardarei no coração. Disse que foste pai, SIM. Ensinaste-me a andar de bicicleta na praça de táxis de Campanhã, acompanhaste-me ao altar… Minutos passaram, não falávamos mas partilhávamos um cúmplice silêncio em profunda sintonia. Olhei para o teu nariz. Curiosamente senti vontade de te tirar os pontos negros. Que ridículo!… Levantei o cobertor. Tinhas perdido massa muscular. Estavas com corpo de velho, fraquinho, no entanto com a pele branquinha e limpa. Nem um arranhão. Comecei a brincar com a tua mão. Carregava o seu peso para cima com a minha mão e deixava-a cair, como se estivéssemos a jogar aquele jogo das palmas. Pai, será que algum dia em criança jogaste esse jogo comigo? Se não, ainda bem, pois isso dói…
De repente, quando olhei para o ecrã vi os dígitos em 42. Estava a chegar a hora. Foi aí, num incontrolável impulso, que a minha voz expressou o que o meu coração sentiu: “ Amo-te, pai”. Pela primeira vez na minha vida, disse-te o que tanto desejavas ouvir. Poucos instantes depois, velocidade da luz, os números já ameaçavam terminar. A minha cabeça alternava entre ecrã e a tua face, face que entretanto tinha recuperado dos ferimentos mas que agora teria mudado de cor. Uma cor pálida. A tua língua, que estava pousada no teu lábio inferior, saliente, já não estava encarnada, tinha agora a cor de caju. Os risquinhos vermelhos do teu olho semiaberto tinham desaparecido. Agressivamente, um som monótono e persistente veio quebrar a nossa sintonia. A máquina avisava: Sem pulso. Os médicos e enfermeiros mantinham-se ausentes… nós, continuávamos com a mão dada. Contrariamente, vi pulsação no teu pescoço, um pequeno caroço do teu lado direito batia. Senti então que estavas a enganar o universo. “Pai, tu continuas vivo”, pensei eu na esperança de um milagre. Mas esta esperança infantil, de quem tem laço visceral, sumiu. Logo após o caroço no teu pescoço parecia ter sido engolido por ti, e desapareceu também.
Num tempo indefinido senti que entrava uma médica. Disse-me: “Vou-lhe dizer uma coisa: O seu pai estava a sua espera.” “EU SEI!”, gritei, e desatando a chorar e a soluçar como uma menina que ao chorar dividia as palavras em sílabas. 

Está quase a fazer um ano quando percebi que os teus três respiros quando cheguei foram expressão de… Alívio? Desespero? Consolo? Alegria? Impaciência?… 

Quem sabe um dia me dirás…

(texto de SOFIA BARRETO, filha do autor e co-coordenadora da edição)


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