Maria Mamede por Nelson Ferraz

Maria Mamede por Nelson Ferraz

Por ocasião do 75° aniversário e lançamento do livro “TUDO O QUE TEMOS É O INSTANTE”

capa Tudo o que temos é o instante

hoje é um dia perfeito para se falar de poesia.
Filha. Mulher. Mãe. Mulher. Vida. Fonte.
e palavras com um aroma a brilho.
palavras sem o adorno excêntrico da fantasia difusa.
Maria Mamede escreve desde sempre.
faz tempos que foi esse primeiro verso.
Depois a sua marca nas artes literárias cresceu com a consistência da qualidade que é esta imagem de agora:
a imagem de uma autora, genuinamente autêntica, que espalha a simplicidade difícil, através de uma escrita terna,
ligada à terra e à luz, à paixão e ao âmago profundo de todos os seres e de todas as coisas que merecem ser
inventariadas para bem da alma e das suas cartilagens.

o seu primeiro livro “Desencontro”, foi publicado em 1977.

seguiram-se outros títulos (muitos) que compõem uma obra de inegável valor literário, plena de imagens e de histórias
que exaltam de forma sentida,
os encontros e os desencontros,
e tantas outras particularidades de um universo muito seu (e nosso), de onde, de forma expectável, brotam, inesperadamente, pedaços de uma beleza poética singular.

é uma obra rica, onde se destaca o amor
e quando o amor esteve ou foi, houve sempre dois lados que nunca foram um.
porque um deles partia-se
ou partia.

no entanto, o Amor maiúsculo habita toda a sua Poesia
esteve e foi. está e é.
protagonizando, amiúde, a razão de tudo o que importa,
desde o canto da ave e a sucessão das estações, até ao arrebol repetido que o seu coração
descreve com grande acerto poético.
e, depois,
há a natureza, imprescindível nas suas palavras.
e há a presença divina que a autora trata por tu.
e há a nostalgia de corpo inteiro, de vida inteira, que Maria Mamede pendura, sabiamente,
nos olhos dos leitores e a que eles, os leitores, se agarram como sendo, já, inteiramente, sua.

mas, falemos deste livro: “Tudo o que temos é o instante”.

um livro onde a autora sublima o definido e o indefinido articulados pela enumeração do
ápice, do átimo e do momento, tudo significados de uma circunstância amplamente inteira e
que se repetem ao longo da reflexão sobre cada instante que nos é permitido analisar ou,
simplesmente, descrever, quando a vida se esbate como um “olhar baço”.

existe neste livro uma honestidade de que a Maria Mamede nunca prescinde. e essa é uma
particularidade notável de quem escreve mostrando o mundo que ela é
e o mundo como ela o vê e analisa.

sob a capa de um credo amadurecido, Maria Mamede oferece-nos a bula de existir fora da
escuridão desavisada.
e claro que há efeitos secundários:
mais de uma pessoa em cada duas rever-se-á nas palavras destas páginas.

Maria Mamede é uma caneta branca, um pássaro de sílabas
num céu de folhas azuis.
as suas palavras são límpidas, complexamente simples, intensas, humanas.
são palavras sem roupa, alinhadas com o coração do poema.
a sua escrita tem um sol fácil. um solo genuíno. contagia.
as suas palavras exaltam, de forma sentida, emoções compridas e importantes.
as suas palavras colocam-nos entre o humano e o humano.
e, sem fuga possível, entre a beleza e a beleza.
é assim a poesia de Maria Mamede: rebeldemente serena.
sempre e aqui.

estamos, neste livro, perante a menina-velha, natureza da natureza.
filha e mãe. ave e árvore. noite e madrugada. alma antiga e luz.
e outra vez, luz.

estamos na presença de uma poeta experiente e livre como o rouxinol de um instante
anoitecido
ou o melro de outro instante que amanhece.

ela própria, um substantivo próprio de uma oração incomum, cheia de verbos que nos são
caros e nos alindam os dias, as feridas e a vida.

este livro não é alegre nem triste.
é um livro de fé: “amanhã a aurora vem de novo”.
é um livro de angústia serena, de dúvida tranquila: “e vamos caminhando sem saber por onde
sem saber porquê”.

este livro é um olhar, um beijo, um suspiro, um cais.
é um ensaio resumido do sítio onde se chega, quando a saudade inunda os olhos e as
estações desfilam com a dureza do tempo a escavar o infindável anil.

este livro é uma travessia concreta de quem diz: “quero saber voar” sem saber que já sabe.
e quando a autora afirma” Vivi para te encontrar minha canção outonal” estamos perante um
“tu” que é um instante maior de busca.
a razão de um instante após outro resultar num instante inteiro, conseguido a pulso e a
coração.

e foi a pulso, a punho que este livro foi escrito de mãos abertas
para romper a treva no caminho por fazer no corpo do tempo.

estamos perante um tratado de convicções traduzidas numa linguagem que nos toca.
Maria Mamede diz-nos coisas que estão escritas e outras que nem sequer precisou de escrever.
esta obra é um desassossego tranquilo. a definição madura do indefinido instante.

nascemos e somos uma coisa nova no vocabulário do tempo.
uma coisa nova que se acende de rompante.
somos o instante, um instante, cada instante, apenas o instante,
à procura do instante.

nisso e nisto, nesse e neste caminho oblíquo, sem sabermos se somos recta ou semi-recta, nós levamos a vida inteira a viver em fragmentos, a definir o que foi, o que é, e o que vai ser, sem uma bússola que nos afaste desta brasa que é a “saudade que vem bailar” nos olhos indisciplinados pelas interrogações.

depois de perguntarmos tudo ou quase tudo, ficamos à espera.
à espera de uma “Estrela entre as estrelas”.

e acabamos na sala da casa, na sala da nossa casa, entardecidos, sob o olhar mortiço do relógio de parede.
como ele, a nossa corda está cansada, gasta.

é então que pegamos no livro, neste livro, e percebemos que
tudo o que fomos, tudo o que somos, tudo o que tivemos e tudo o que temos é o instante.

e “cada instante é supremo” tal e qual como “o tempo certo do regresso a casa” onde Reencontro e Paz se escrevem com letra grande
tal e qual a Esperança de que às noites seguir-se-ão, sempre, manhãs grávidas de luz.

nascer e morrer são actos solitários.
entre a chegada e a partida, a vida dá-nos tudo a que temos direito:
o instante. e é só isso.
é apenas o instante que trazemos desde o nascimento.
apenas esse instante. nada mais.

entramos vida adentro, um instante antes de sermos
a corda de uma circunferência nova num “outro lado”.
esse lado que a autora quer que lhe mostrem no mesmo instante que o descreve, nas palavras que não diz.

Maria Mamede, saindo do seu mundo, cheio de “outros sítios”, vem ao nosso encontro para nos avisar que este lado é para levar a sério, instante a instante.

a sua obra em geral, e este livro em particular, explicam-nos tudo.
Maria Mamede está aqui, como sempre esteve, numa missão de estar no outro, estando em si mesma.

há neste livro a sabedoria experimentada de uma criança que nunca se cansou do “era uma vez”, instante após instante, num só instante.
e, sem dificuldade, concluímos: só os espelhos têm rugas.

princípio e fim confundem-se no percurso.
estar alegre e estar triste escrevem-se na mesma lousa em que a pena se desloca, fugindo da esponja.

haverá um lugar outro, sem margens.
haverá a dúvida solitária em cada olhar que lançamos para dentro.
num instante somos a terra, noutro instante somos a alma envelhecida que procura encaixilhar-se no instante em que o céu parece abrir-se para nós.

talvez sejamos o vértice das arestas que procuramos no céu.

mas o céu, minha querida Amiga, não é um limite credível.
é, apenas, um nome. o teu nome.
e tens razão:
“Tudo o que temos é o instante” … e este livro.

Parabéns!

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nelson ferraz

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