As Sílabas Marginais de Nelson Ferraz.

As Sílabas Marginais de Nelson Ferraz.

Apresentação da obra por António de Oliveira e
Agradecimentos do autor durante a sessão.

Apresentação de “As sílabas marginais”

Não sou poeta, mas adoro a poesia, por pensar que o poeta e o filósofo são os únicos que conseguem questionar-se a si próprios e ao mundo, a este complicado e monstruoso mundo com que nos confrontamos a diário.

Porque como disse, não há muito tempo, três ou quatro meses, o sociólogo francês Edgar Morin, ‘O problema da felicidade está subordinado àquilo a que chamo, o problema da poesia da vida, isto é, entre a prosa as coisas que fazemos por obrigação, que não nos interessam, mas para sobreviver, e a poesia, tudo o que nos faz florescer, o que nos faz amar e comunicar’

É por isso que a felicidade é frágil, e não se pode sonhar com uma felicidade contínua nem para nós nem para a humanidade e, talvez por isso, me sinto sinto tão frágil como no dia em que dei a primeira aula, sinto-me como se não soubesse nem tivesse lido a matéria para a explicar porque, na verdade, nem sequer sei se este livro terá ou será, matéria para ser explicada, para comunicar!

Mas gosto da escrita toda que aqui está, já a li uma quantidade de vezes, mas sei também que vou ter de a reler outras tantas, porque a linguagem usada pelo Nelson está cheia de metáforas, os maiores inimigos das leituras rápidas.

As daquelas leituras urgentes, das que se fazem com poucos e poupados caracteres, para ajuntar depois mais uma meia dúzia de emojis, tudo teclado e twitteado, sem levantar a cabeça nem dar atenção às passadeiras.

E, por isso também, atrevo-me a falar das metáforas e a ler uns pedaços dos poemas onde estão algumas das que mais me tocaram, por razões diversas, salientando, no entanto, que será uma leitura intimista, como se estivesse sozinho, sem estar preocupado por ter à frente uma assistência, obviamente sabedora e crítica.

E entre as metáforas que ali estão, sem os estropícios dos emojis, vamos encontrar os temas urgentes, por nos serem tão vitais e necessários como são os do amor

(nasces como uma palavra clara
no poema imprescindível que explica
o amor antes de tudo.

o teu olhar é um cais sereno
uma espécie de abraço, sossego, paz luminosa
na alma, depois do vento.

e quando não estás, meu amor, o silêncio veste-me
com as tuas palavras doces, desenha-te para mim.
e eu já não fico um livro fechado.
és, muitas vezes, a minha respiração tranquila).

E outras e mais metáforas depois, noutros poemas a referir problemas e questões bem actuais desta nossa sociedade,

(no armazém de velhos, há velhos
com nódoas enormes no coração, mas
que acordam todas as manhãs
como se o amor, o mesmo
de que nunca saíram, os aguardasse.
e, com os dentes por baixo da torneira, mangas
molhadas, os velhos, de queixo vazio, chorriem).

E, passadas mais umas poucas de páginas, as tais metáforas dizem e contam dos maravilhamentos, mas também das artimanhas com que nos defrontamos nas voltas da vida

(cravos soldados nas mãos
do povo
tanques sem deter gente
e os ideais a ficarem partidos
à pressa.

e ali v(b)erdade
[pronunciada à moda do Porto]
a ser a única coisa que ficou
fora dos baldes no fim da festa.
uma semana depois
ainda uma data de pessoas na rua
cinquenta por cento no pingo doce.

e as promoções de censura
nas prateleiras
à direita dos tomates desimportados
da salada por fazer).

Ou em poemas onde se acham as metáforas de outros encantamentos, os maravilhamentos das utopias que nos movimentam.

(se chover, abriga-te na povoação.
lá, onde o velho livreiro tece grutas de exílio
às candeias em fuga.

anota os títulos dos livros do fundo.
parte.

se chover, os dois rios serão as margens
da estrada. escolhe o de água nova.

anota o rumo do vento.
vai.
se chover, terás as mãos invisíveis
daquilo que está certo),

E ainda outros e mais poemas para nos contar daquele outro e complicado mundo, o das ilusões

(o café bebe-se cheio.
e a vida. cheia. deve beber-se cheia.
às vezes uma caneta basta-me
para inventar o que já conheço
ou para confirmar o que ainda não sei.
linhas com muitas vozes, poemas, palavras
e uma paisagem com vista
para dentro da cabeça.
coisas sem nexo, coisas com nexo assim-assim.
e coisas um pouco mais sérias
como as memórias, as saudades
e montanhas de perguntas com respostas
que se calhar não faço muita questão de saber).

Estes são apenas uns poucos e escassos exemplos da enorme riqueza das imagens em palavras, que o este livro nos traz, com que o Nelson Ferraz conta de tudo o que nos e aflige (e aflige com certeza), qualquer pessoa que, nestes tempos que penamos, saiba olhar e ver em volta, para perceber bem onde se encontra.

Mas não se esquece de nos deixar alguns avisos, noutras e mais simples metáforas

(caminhamos uma ilha que somos.
a nós pegam-se todos os mais queridos seres
as mais queridas coisas.

caminhamos uma ilha que somos
sem nunca sairmos de perto do mar.

caminhamos uma ilha que somos.
mesmo quando de nós se despegam indefesos
os mais queridos seres
as mais queridas coisas
perante a finitude do chão)

O Nelson bem sabe que a metáfora é uma figura de estilo (até se aprende isto logo nos primeiros anos da gramática), a mesma figura que permite mostrar as emoções e os sentimentos, que nos leva muito mais além do sentido literal da palavra, para a ligar a outras, cuja interpretação poderá vir a ser melhor entendida, e até sentida pelo leitor, qualquer que ele seja.

É por isso que um texto, ou outra qualquer obra tem sempre, pelo menos, e sempre, dois autores – o que a faz e o que a lê, o que a vê ou até a ouça – com o autor também sempre a desejar que as interpretações coincidam – os dois ligados como aqui, neste livro de poemas, apenas pela leve magia das palavras, das que ele alinhou, para nós também percebermos e atingir até o que ele não quis escrever.

Foi isso com certeza, que levou o último vencedor do prémio Planeta, Javier Serra, a ter afirmado recentemente, ‘Escrever é uma função chamânica, pois os génios sempre foram influenciados por duendes, seres capazes de ir ao outro lado, como acontece com os chamans, como terá acontecido a Victor Hugo ou a Beethoven, que atribuíam todas as suas obras aos espíritos, e a Unamuno, que garantia sermos apenas animais à procura de luzes’

Nem sequer Paul Éluard, talvez o melhor e mais conhecido dos poetas surrealistas franceses, andaria muito longe deste modo de pensar, pois deixou escrito, ‘Os verdadeiros poetas jamais acreditaram que a poesia lhes pertencesse exclusivamente, pois os objectos, os factos, as ideias que elas descrevem podem extinguir-se por falta de vigor, mas logo serão substituídos por outros objectos, factos e ideias que as próprias palavras acidentalmente vierem a suscitar, realizando assim a sua inteira evolução’

É a subtileza e a maneira própria com que um poeta olha para o mundo e para o que o rodeia, que também levou o filósofo Santiago Alba Rico a definir a poesia como uma actividade sagrada, só para apaixonados e inspirados, por ser ‘Uma aliança entre austeridade e a arte, incompatível com o Twitter e os actuais formatos tecnológicos, onde se quebrou completamente a transmissão do saber’

Como se quebrou também e ao mesmo tempo, acrescento eu, o diálogo com as emoções, as sensações, com os sonhos e os maravilhamentos, com as utopias que comandam a vida, mas estas coisas não acontecem na poesia do Nelson Ferraz, porque, acredito, escrever não é um prazer solitário, antes um modo de emocionar o maior número possível de pessoas, oferecendo-lhes as imagens que guarda pela sua maneira muito própria, particular e única de observar as coisas todas que nos são comuns.

Talvez seja oportuno recordar algumas palavras de John Berger, que foi crítico de arte, pintor e escritor, porque aqui os poemas mais parecem uma celebração, às vezes uma súplica ou mesmo um lamento, ‘Pois na poesia não há a quem orar, escondido atrás da linguagem usada. A poesia não tem nada que explicar, nem tem de ser uma estória que termine com uma qualquer solução’

Mas a metáfora, como processo de transferência de pensamento e de aproximação entre palavras, tem tudo a ver com a vida e o conhecimento do homem, o que só entende o mundo e as coisas, pelas janelas que os sentimentos deixam abertas, por onde entram e saem as torrentes de emoções, a parte mais importante e fundamental da condição humana.

Muito obrigado por me ouvirem e me perdoarem a falta de jeito para dizer poesia e, muito obrigado a ti também, meu amigo Nelson, por me teres chamado para estas andanças.

António Oliveira
Águas Santas, 21.12.03

Boa noite.

ao sr. Miguel dos Santos, presidente da Junta de Freguesia de Águas Santas, pelo caloroso acolhimento e por todo o interesse que sempre manifestou para que este livro fosse apresentado aqui, em Águas Santas.
Agradeço
ao meu Editor, Jorge Castelo Branco, pela sua confiança, por ser parte importante no meu percurso literário e sobretudo pela sua amizade.
Obrigado, Jorge.
Agradeço
ao Prof. António M. Oliveira, pela excelente apresentação que fez deste livro, pela atenção que tem dedicado à análise das minhas obras, pelas partilhas literárias que mantemos, e por ser, desde sempre, um Amigo que não dispenso.

quem te conhece, sabe que para lá da tua imensa cultura, está também um ser humano de excelência.
Obrigado, António.

Agradeço
aos magníficos actores:
Alzira Santos, Amílcar Mendes, Eduardo Roseira e Sara Velho,
presenças frequentes nas apresentações dos meus livros.
Convosco as palavras são felizes.
Obrigado a todos vós pela vossa imprescindível colaboração.

Agradeço
ao Mau Olhado, ou melhor dizendo ao João Cardoso e ao seu músico convidado Lucas.
Sempre brilhante e surpreendente, este Mau Olhado.
Obrigado pelo teu contributo.

Agradeço
à Dra. Maria Luísa Barreto pela qualidade e rigor na condução deste evento. Obrigado.

Agradeço também
a todos vós que aqui estão.
Bem hajam.


E, sim,
É verdade. Estou em casa.
Aqui há pássaros na manhã e árvores na rua.
Gente boa e genuína.
Coisas destas, só existem em lugares bonitos, como este.


Em 2003, apresentei um dos meus livros, na Biblioteca Municipal da Maia.
A meu convite, na assistência, estava o sr. Manuel Correia, saudoso Presidente desta Junta.
Desde aí que, apresentar um livro em Águas Santas, foi sempre uma possibilidade que foi ganhando contornos reais.

Eis que aconteceu, mesmo, sr. Miguel dos Santos.
E aqui está este livro.

Orgulhoso e feliz. É assim que o autor está.


às vezes levo horas, dias, semanas à procura da palavra exacta para a encaixar num poema ou num texto.
da sílaba à palavra, da palavra à frase, é assim que construo as margens
de um território onde sou um tranquilo inquieto.

a vida é demasiado complexa para que eu deixe de a interrogar.
as emoções são demasiado importantes para que eu deixe de as investigar.
a liberdade é demasiado cara para que eu deixe de a defender.
e eu não permito que nada disto fique a meio.

sou feito de sílabas.
sou, possivelmente, um marginal.
mas não temo ser obscuro se, com isso, encontrar vestígios de amor
nas sílabas que construo.

escrever é um risco que, no meu caso, pode ser uma árvore sozinha, uma criança descalça, uma flor cheia de sede, o beijo do vento
ou uma revolução inteira.
sílaba a sílaba.

Obrigado. Muito obrigado por terem vindo.

Nelson Ferraz
Águas Santas, 21.12.03

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