Padre Mário, filho do vento. Texto de Jorge Castelo Branco
Introdução a “Evangelho no Pretório”
Não peço a absolvição. E não a peço porque se há casos em que ela se imponha como sagrado imperativo de justiça perante um homem atropelado pelo mau funcionamento das instituições, se há casos em que ela se imponha, este é sem qualquer dúvida um deles. Para o Padre Mário só há um Legislador e só há um Juiz – o Juiz que ditou aquele Código que o acompanha sempre, mesmo ali no banco dos réus. Perante esse Código, perante a Escritura Sagrada, perante esse Juiz Supremo, o Padre Mário está absolvido. E é quanto lhe basta. Se ele sair condenado, Senhores Juízes (e não vejam nisto qualquer falta de respeito), se ele sair Daqui condenado, não será ele que sairá humilhado; temo bem que seja o tribunal.
Alegações finais do Dr. José da Silva, advogado do Padre Mário em Julgamento no Tribunal Plenário do Porto acusado de “actividades subversivas contra a segurança do Estado”. 30 e 31 de Janeiro de 1974.
Quando, depois da euforia da minha absolvição no Tribunal Plenário do Porto (S. João Novo), o advogado me diz que tenho de seguir com ele para o paço episcopal, onde me espera um jantar que o bispo faz questão de promover em minha honra, longe de ficar eufórico com essa informação, recebo-a como um balde de água fria. Todo eu, nessa hora, só desejo chegar o mais depressa possível a Macieira da Lixa, junto do seu povo, do qual estou há meses afastado por causa da prisão política mais do que injusta. (…) Depois de uma breve pausa, abre [D. António Ferreira Gomes, Bispo do Porto] um rasgado sorriso, sempre na direcção do advogado e acrescenta um pormenor, de todo inaudito. Assim: “Se o senhor Dr. José da Silva me permite, tomo até a liberdade de lhe sugerir desde já o título que esse livro poderá ter: EVANGELHO NO PRETÓRIO”. E explica-se. “É que, dois mil anos depois, o Evangelho voltou de novo ao Pretório [Tribunal de Pilatos, representante em Jerusalém do Império romano] e, desta vez, saiu absolvido”.
PE. MÁRIO DE OLIVEIRA, JANEIRO DE 1971.
Introdução por Jorge Castelo Branco
Propositadamente inverto a ordem temporal destas duas epígrafes. Digamos que é o meu contributo para o acervo de ironias – ressalvado pelo autor no subtítulo do livro. Sim, faria até algum sentido a sugestão do então Bispo do Porto para título do livro que propunha em desafio: como o Pretório de Pilatos em vésperas da Páscoa dos Judeus do ano 33, o primeiro julgamento do Padre Mário em 1970/71 tinha sido, na sua essência, político – um Império Romano politeísta pouco valorizava as religiões em suas províncias, a sua preocupação era quase unicamente político-administrativa. A ironia estaria na comparação do “arguido” – na altura – e, três anos depois, pela incoerência de princípios ao deixar cair o seu presbítero, retirando-lhe a paróquia de Macieira da Lixa e deixando-o ir preso pelas mãos da Pide-DGS. Irónico também, 48 anos depois, Março, como então em vésperas de Páscoa, servir a espantosa sugestão para nome de livro, um livro muito especial e muito aguardado, o 48º livro do Padre Mário de Oliveira e, de todos, seguramente o mais autobiográfico.
Ah! E a propósito. O livro do Dr. José da Silva com as peças do processo acabou por sair nesse ano – o primeiro dos dois volumes – sob o título, menos provocante, de “Subversão ou Evangelho?” E, em meados do mesmo ano, a “réplica” de um cronista dos jornais “A Ordem” (quinzenário católico editado na cidade do Porto) e “A Voz”, industrial de minas de profissão, de seu nome Amadeu Vasconcelos, que publica “Subversão, sim, Evangelho, não. A verdade sobre o caso do Padre Mário, de Macieira da Lixa”. Este livro, alicerçado numa esforçada campanha de alguma imprensa e televisão, atingiu quatro edições num curto espaço de tempo. Uma moralidade beata e conservadora, indignada com a sentença que absolvia o réu e com um afrouxar dos bons costumes da nação, revia-se em prodigiosas tiradas do autor, como, referindo-se ao Padre Mário, “um Lenine, um cabecilha de qualquer coisa, um paranóico, um infernal”.
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Quis o destino que o terceiro filho de Ti Maria do Grilo recebesse o nome de Mário e não Amaro, como estava destinado, nome de seu padrinho. Um “erro oral” de seu pai, Ti David, fá-lo pronunciar, no registo, ‘Mário’ ao invés do desejado ‘Amaro’. Embaraçoso lapso tê-lo-á poupado a impiedosas comparações ao farisaico personagem de Eça de Queirós; teria sido demasiado fácil, anos mais tarde, entre o rol das muitas rasteiras e torticeiras acusações.
Mário cresceu feliz, em Lourosa, “entre os lírios silvestres das bordas dos caminhos”, filho do vento – “vento que rebenta todas as amarras” e que o fecunda. Mais tarde chamar-lhe-á Ruah, do hebraico “sopro divino”. A pobreza por condição molda-lhe o carácter em humanidade. Já com sete ou oito anos confessava a sua mãe o desejo de ser padre: – Para ser diferente – justificava. Cumpriu-se o destino. Com onze anos encontramo-lo no Seminário/Colégio de Ermesinde, depois em Gaia e, finalmente, no Seminário de Vilar. Cresce em idade,em sabedoria, em liberdade, em autonomia e em entrega aos demais.
Da vocação, que lhe vem do ventre da mãe, à ordenação, cumpre-se o sacramento que apenas confirma o seu desígnio. Todavia, “Queriam-me sacerdote, clérigo, funcionário do religioso eclesiástico, [e entreguei-me] como presbítero para o mundo, para a humanidade. O mais humano entre outros humanos. (…) Mas só assim eu-sou! Pague o preço que tiver de pagar”.
Naquele tempo, Jesus dizia, no seu ensinamento, à multidão: “Acautelai-vos dos doutores da Lei, que gostam de exibir longas vestes, de ser cumprimentados nas praças, de ocupar os primeiros lugares nas sinagogas-templos e nos banquetes; eles devoram as casas das viúvas (naquele então, a expressão máxima da pobreza – N.A.) – a pretexto de longas orações.
MARCOS 12:38-44
Um mês após a ordenação que ocorrera a 5 de Agosto de 1962, o jovem Padre Mário de Oliveira é nomeado coadjutor do pároco das Antas, Santo António das Antas, importante paróquia da cidade do Porto. Confronta-se com uma estrutura institucional eclesiástica que lhe cerceia o seu ser-viver-falar presbiteral. Confronta-se com uma igreja distante, desumanizada, com as pessoas olhadas e tratadas como objetos, “obedientes-submissas, mudas-tolhidas e não como pessoas com voz e vez”.
A nomeação, prevista para dois anos, começa ao fim de seis meses a revelar-se instável. O abade, incomodado com o carácter “desestabilizador” do presbítero recém-ordenado, não se poupa a esforços junto do administrador apostólico para que o retire, o que haveria de acontecer. E esta seria, para o Padre Mário, a primeira pedra no caminho eclesial que idealizara, a primeira constatação de que a sua forma de anunciar o Evangelho colidia, violentamente, com as práticas da Igreja.
A nomeação que se seguiu acabou por surpreender, pela responsabilidade e desafio, o próprio jovem presbítero: não propriamente a colocação com professor de Religião e Moral – primeiro no Liceu Alexandre Herculano, depois no Liceu D. Manuel II, ambos no Porto – mas sobretudo o ofício de apoiar pastoralmente os jovens estudantes e, mais adiante, a indicação como assistente diocesano da JEC Juventude Escolar Católica, organismo da Acção Católica Portuguesa.
Estávamos em 1962. A realidade política e social era conturbada e reflectia-se na forma de pensar-agir dos jovens; o papel de um assistente diocesano obrigava a gerir “com pinças” a acção pastoral-educacional, questões de fé e espiritualidade e de relacionamento entre o Estado Novo e a Igreja Católica. Esta experiência do jovem Padre Mário terá sido profundamente fecunda e inspiradora: “coisas belas, novas, humanizadoras que os estudantes, algumas das suas famílias e eu próprio estávamos a viver”. E este serviço pastoral acabará, porventura,a influenciá-lo de uma forma decisiva, muito do seu pensar-futuro. A aproximação às pessoas fá-lo reflectir, pela primeira vez, se Jesus e Cristo serão porventura antónimos e não sinónimos, como a teologia cristã e tridentina lhe tinha ensinado. Estaria aqui, embrionariamente, não o seu Jesuismo (bem sabemos que o Padre Mário não gosta de ‘ismos’), mas a sua fé em Jesus, o Deus que se revela em Jesus.
A coragem é a primeira das qualidades humanas porque garante todas as outras.
ARISTOTELES
O meu advogado, Dr. José da Silva, faz questão de arrolar como testemunha de defesa o pároco de Vila Meã. E quando o Pe. Luís testemunha perante o colectivo de juízes que o que me move é praticar e anunciar o Evangelho de Jesus, o juiz presidente pergunta-lhe se ele, como padre e pároco, não tem também a mesma missão. Ele reconhece que sim. “Mas então porque é que só o pe. Mário está aqui preso e a responder como réu em tribunal e não também o senhor?” Resposta pronta do Pe. Luís: “Porque não tenho a coragem dele”.
MÁRIO DE OLIVEIRA
Até 1974, o Padre Mário de Oliveira prepara-se para viver um dos períodos mais conturbados da sua vida. Com trinta anos, e depois de um período de quase cinco de alguma acalmia no desempenho de tarefas pastorais-educacionais progressivamente maiêuticas com os estudantes, que o realizam como homem e como presbítero por vocação, é chamado pelo então Bispo do Porto, D. Florentino de Andrade Silva, que lhe comunica crua e abruptamente, “sem nunca o olhar nos olhos“, a convocação para Capelão Militar na Guerra do Ultramar.
Corria o ano de 1967. A decisão, tomada unilateralmente e sem consulta, foi uma ferroada no coração do presbítero-menino (quem ler esta autobiografia notará a resiliência e coragem com que o Padre Mário enfrenta todos os problemas, sem lamentos nem ódios. Vive positivamente, na paz de uma consciência de quem age por princípios inabaláveis, coerente nos actos e nas palavras das suas convicções, numa serena mas contagiosa coragem. Apenas por uma vez, deixa transparecer um desânimo e desilusão, justamente nesta). A decisão, que só por si o vai obrigar, por obediência, a “representar” um papel próximo de um regime fascista com o qual não se identifica – “unha com carne” é a expressão do administrador apostólico – e que, convictamente crê contrário ao praticar-anunciar o Evangelho de Jesus.
Estou em crer que é aqui o definitivo ponto de viragem no destino de sua vida: agir em consciência, em acto de coragem, desafiando todos os poderes desumanizantes: “Serei o mais humano entre outros humanos. (…) Mas só assim eu-sou! Pague o preço que tiver de pagar”. Enviado para a Guiné como alferes-capelão do regime, raro ou nunca se assume como tal, mas sim como presbítero da Igreja de Jesus. Em dois meses de serviço é diversas vezes, por diversas instâncias, repreendido/acusado de atitudes ditas subversivas, como subversivo fosse abraçar os soldados nas suas angústias, escutá-los nas suas dores, com eles partilhar refeições e tristezas e com palavras e posturas maiêuticas levantar-lhes o ânimo e a auto-estima.
A gota de água vem com a célebre homilia na missa do Dia Mundial da Paz, 1 de Janeiro de 1968, onde defende abertamente o direito dos povos colonizados à sua autonomia e independência, e alerta que só assim se atingiria a verdadeira paz, não uma paz imposta pelas armas de um Estado colonizador. Mais, imbuído pelo espírito do dia que se celebrava, instigado pelo tema que lhe tinha sido proposto, desenvolveu o conceito da verdadeira paz, procurando conduzir a uma reflexão de quem o escutava que a verdadeira paz é um dom de Deus, que se não identifica, necessariamente, com o conceito de paz de que falam os políticos. Confrontado energicamente pelo comandante do Batalhão de que a mensagem da sua homilia violava a Constituição que ele, militar de carreira, jurara defender, a resposta, plena de coragem/razão ainda hoje troa, incisiva e desarmante: “Pois então, meu Comandante, mudem a Constituição, porque eu não posso mudar o Evangelho de Jesus!”
O destino estava traçado. Começara a via-sacra do calvário do Padre Mário. “Padre-irrecuperável” diria o bispo Castrense. “Instigou os militares, presentes ou não nas fileiras, a praticar actos de rebeldia e à desobediência às ordens e leis militares” ler-se-ia no rol de acusações no Tribunal Plenário, mais tarde, aquando do julgamento do Padre Mário como pároco de Macieira da Lixa. E também, no mesmo processo: “Pregou a deserção e incitou a juventude a recusar-se a combater o terrorismo no Ultramar, equiparando os nossos combatentes a criminosos que matam”.
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Depois de duas prisões políticas em Caxias e outros tantos julgamentos no Tribunal Plenário do Porto, é-lhe retirado o ofício pastoral por D. António Ferreira Gomes, sacrificando o pároco, “salvando” a Concordata, acto político, portanto. Presbítero sem ofício canónico, era tecnicamente a sua condição. Creio, apesar de tudo, que foi uma graça de libertação: não mais um funcionário da Igreja. Mário de Oliveira “sem paróquia nem altar” segue o seu próprio caminho fora do sistema eclesiástico, mas sempre dentro da Igreja de Jesus. A Igreja suspira de alívio, livre do seu “anti-pároco” e da sua voz incómoda.
Não guarda rancores e não se arrepende da “opção de classe” que escolheu: “Ser diferente”, disse-o a sua mãe, Ti Maria do Grilo, com 7 ou 8 anos. “Sempre me experimentei padre/presbítero por vocação. Em mim, ser padre é resposta a um chamamento. Vejo-me muito na linha do chamamento do jovem Samuel bíblico. Chamado para apontar muitos dos desvios históricos da Igreja que me ordenou. E para apontar caminhos alternativos. É uma missão incómoda, mas necessária. Alguém tem que o fazer, o Espírito assim o quer. E quem for chamado a esse serviço será feliz se o realizar. Contra ventos e marés. Porque me experimento assim, creio que a própria Igreja que um dia me impôs as mãos e me confiou o ministério de Evangelizar os pobres também não se terá arrependido de o ter feito. Pode não gostar do que eu faço e do que eu digo, mas não pode deixar de reconhecer a justeza do que eu faço e do que eu digo. Por isso, me acompanha com perplexidade, mas também com atenção. E sei que muito do que eu faço e do que eu digo não tem caído em saco roto. Está à vista de toda a gente”.
Este é o teu 48º livro, o nosso 15º, em caminhada solidária e partilhada desde “O Livro da Sabedoria” de 2010, oito anos de comunhão que muito me orgulha.
A coragem, revela-se no Homem de várias formas; em ti, Mário, mede-se por inteiro, pelo tamanho de uma vida. Inspira-me a tua coragem, a tua integridade, o teu escrupuloso sentido de agir em conformidade absoluta com os valores que defendes.
Coragem, essa tua coragem, essa prodigiosa e luminosa coragem! Que fizeste tu quando vigiavam e controlavam todo o teu serviço pastoral? O que fizeste tu quando te julgaram no Tribunal Plenário do Porto acusado de “actividades subversivas” que mais não eram do que a defesa, intransigente, do Evangelho de Jesus ? Que fizeste tu quando por duas vezes a PIDE te prendeu? O que fizeste tu quando te retiraram o ofício eclesiástico? O que fizeste tu quando te vilipendiaram por defenderes que a Igreja Católica criou e desenvolveu e impôs ao país uma multinacional religiosa chamada Fátima? Pois respondo: Nada, apenas o que tinhas feito até então… talvez com mais força!…
Acedeste, em parte, ao meu insistente pedido desta autobiografia, que quase sempre rebateste com a insofismável e desarmante resposta: “A minha vida está em todos os meus 47 livros; é procurá-la, está lá toda!” Não desisti, crê-me quase tão teimoso quanto tu! Proporciono agora aos teus leitores e ao público em geral a oportunidade para te dares a conhecer, a vida de um homem tão injustamente acusado, maldosamente ostracizado ou desgraçadamente incompreendido. Agora, por mais não seja, posso aconselhar a leitura deste livro quando não puder, querer ou dispor de tempo para entregar-me, em tua defesa, a grandes e desgastantes polémicas que raro acabam bem. Justo também, agradecer-te o facto de me teres aproximado mais de Jesus do que muitos outros antes tentaram. Creio agora que o segredo foi por pouco tentares e tanto me mostrares, e isso devo-te em eterna gratidão, mais humano, mais liberto.
Jorge Castelo Branco
Matosinhos, Março de 2018.